ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall, jornalista e crítico de artes, é ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

FOLIA DE REIS

Texto
Arnaldo Chieus

Dentro do ciclo de festas da religiosidade expressas no catolicismo popular, a Folia de Reis é aquela que comemora o nascimento de Jesus Cristo. Essa festa faz parte de uma tradição popular originária na Europa que foi introduzida em Portugal por volta do século XIV e que sempre esteve associada à devoção religiosa do ciclo natalino comemorada com música folclórica e festas populares. O português que colonizou o Brasil veio com todo um precioso acervo acumulado de séculos de cultura, civilização e contatos com os mais diversos povos. Em sua bagagem, a saudade é uma das principais responsáveis pela sua energia, coragem e capacidade de permanecer nos horizontes distantes. [1]

“Em Portugal, a Folia de reis tinha como finalidade o divertimento do povo. Durante o seu transcorrer, os grupos batiam às portas das famílias, onde eram abertas as chamadas salgueiras, depósitos de mantimentos, pois nessa época, na Europa, é inverno. Ao chegar ao Brasil, a Folia de Reis adquiriu um sentido mais religioso do que profano.” [2] 

“Parece que a denominação “folia” apareceu, primeiro, em Portugal, para designar uma dança barulhenta, com acompanhamento de pandeiros. A mais velha referência portuguesa é de Gil Vicente. Em seu “Auto da Sibila Cassandra”, ele apresenta uma écloga de 1505, na qual os personagens cantam uma “folia”. E a primeira música com esse título, segundo o “Grove’s Dictionary” foi encontrada em Salinas (“De Música Libri semptem”, 1577), em duas versões”.[3]

O colonizador português trouxe para o Brasil diversas tradições associadas à religiosidade popular católica entre a quais aquelas ligadas ao ciclo de devoção natalino. 

Com o tempo essas práticas ganharam corpo e se espalharam por uma vasta extensão do território, ganhando adeptos e linguagens próprias em cada região. 

Em todo o Estado de São Paulo é muito grande a devoção aos Santos Reis, que se expressa na multiplicidade de um complexo de manifestações dentro do Ciclo de Natal, geralmente sincretizando alguns componentes do catolicismo oficial com outros folguedos do folclore local, tornando-os diferentes e peculiares em relação às diversas versões de Reisados de outros estados e regiões do país. 

Conforme Francisco Pereira da Silva, “a Folia de Reis (que não há que se confundir com a do Divino)... é uma das mais bonitas manifestações da alma popular do nosso folclore natalino. Trata-se, em linha geral, de um grupo religioso (no sentido extra-oficial) que, em visitação aos lares da sua comunidade contrafaz a peregrinação dos Reis Magos em demanda do menino-Deus recém-nascido na manjedoura de Belém. De 24 para 25 de Dezembro, no instante neutro da meia-noite, entra a Folia em função. Termina a 6 de Janeiro, Dia de Reis. Mas, excepcionalmente, prolonga-se até Nossa Senhora das Candeias. Isto é, 2 de Fevereiro, que tem a denominação poética de “Candelárias”. O povo é um amor.” 

Entre os caiçaras de Ubatuba “a devoção ao Santo Reis se comemora com cantorias e peregrinações durante todo o ciclo de Natal, que vai desde o início de dezembro até fins de janeiro e possibilita encontros de músicos dos diferentes bairros. Como acontece com a devoção ao Divino, o Santo Reis é considerado como entidade única. Embora saiba da existência dos três reis magos que visitaram o presépio, o caiçara (e mesmo o caipira do interior) a eles não se refere, e a devoção aos reis não está ligada a imagens. O devoto antes os transforma num único santo, sem imagem identificadora, e proclama:”

- “o santo reis é um santo muito milagroso.” 
(Kilza Setti, p. 258/259) 

Esse caráter milagroso das folias está associado ao seu período de peregrinação, organizada geralmente em conseqüência de uma promessa, seja esta feita pelo seu mestre ou por um de seus componentes, que têm entre si alguma relação de parentesco ou amizade. E pelos laços da promessa os componentes da folia assumem entre si o livre compromisso de empreenderem a jornada dos Reis por um período de sete anos. Para que um folião de Reis se considere desincumbido de suas funções com a folia é necessário que ele cumpra a jornada completa dos sete anos de Folia, o que poderá ser feita de forma contínua ou não. Depois de cumpridos os sete anos os foliões estão desobrigados com a folia podendo passar a sair à vontade, neste ou naquele ano, a menos que façam novas promessas. (Folias de Reis, Zaide Maciel de Castro e Araci do Prado Couto – Folias de Reis – Revista do Arquivo Municipal – CLXV – 1959). 

Quanto às promessas, essas quase sempre são feitas no intuito de obter-se o restabelecimento da saúde do próprio promesseiro ou de alguém efetivamente a ele ligado, geralmente um parente próximo. A promessa também tem a duração de sete anos, o mesmo tempo da jornada ou peregrinação da Folia e sua renovação, quando ocorrer, se dá em múltiplos desse número. 

Como ocorre com a Folia do Divino, os agrupamentos de foliões e devotos são designados por Folia de Reis. Seja por devoção, gosto ou função social, peregrinam de casa em casa no período compreendido entre 24 de dezembro (véspera de Natal) até 6 de janeiro (Dia de Reis) com cantadores e instrumentistas entoando versos e cantorias com fundo religioso cumprindo sempre uma ritualística pré-estabelecida. Os versos têm início com o tema da Profecia do nascimento do menino Jesus até a visita dos Reis Magos.

Conforme Alceu Maynard Araujo, “a folia se reveste de um caráter sagrado, são os representantes dos reis magos visitando os devotos, havendo um ritual de visitas e reverências nas casas onde há presépios. Na cantoria os versos giram em torno deste temas: anunciação, nascimento, estrela-guia, Reis Magos, adoração, ofertório, agradecimento e despedida”.[4]

Os figurantes da folia são chamados, em conjunto, foliões, mas, havendo necessidade de especificar, dividem-se em foliões e palhaços. Os primeiros, uniformizados, são cantores e músicos e, durante a jornada, marcham a passo descansado em formação militar, acompanhando a bandeira. Os segundos são principalmente dançarinos e cômicos, ficam em segundo plano em relação aos foliões, sofrem uma série de restrições que serão estudadas a seu tempo, mas vestem-se do modo que desejam e cantam chulas à sua vontade, quando chega a sua vez. 

Se para alguns membros ou acompanhantes da Folia de Reis a sua devoção está associada ao cumprimento de uma promessa, para outros ela pode significar um devotamento essencial ou, em outros casos, simples divertimento. Evidentemente que todos os seguidores, sejam os contínuos  ou esporádicos, sempre cumprem uma determinada ritualística que é fixada pela própria Folia. Importante ressaltar que a Folia, por ser dinâmica na sua peregrinação, nem sempre permite ao devoto ou seguidor estar presente em todo seu trajeto. Por isso é comum nas Folias que percorrem nosso extenso e recortado litoral ter um grupo de foliões fixos, geralmente o versista principal e alguns músicos. 

O versista é na maioria das vezes o mais experiente dos componentes da folia quer pelo seu caráter gregário para arregimentar seguidores quer pela sua capacidade de memorizar e improvisar versos. 

“No litoral norte de São Paulo, “Reis” e mais raramente “Folia de Reis”, e também “Reisado” o grupo de instrumentistas e cantadores que, durante a noite, costuma entoar, de porta em porta, versos relativos à visita dos Reis magos ao Menino Jesus e, inclusive, à Paixão de Cristo, em busca de ofertas que são usufruídas pelos próprios e as quais podem se resumir num simples café.” 

Muito embora a Folia de Reis tenha personagens próprios, composto por mestre e contramestre, os três reis magos, palhaços e foliões, no caso das Folias que percorrem Ubatuba não temos a ocorrência dos palhaços uma vez que a bandeira de Reis, entre os caiçaras, tem espírito basicamente devocional. 

Como toda tradição folclórica, a Folia de Reis vive e sobrevive em Ubatuba como sempre viveu, ou seja, em constante e dinâmica ruptura com o rito tradicional. Tanto o toque quanto o ritmo, a composição dos versos e seu canto, e a própria composição de seus quadros apresenta uma diferença marcante, diferenciando-a daquela que se apresenta no interior do estado. 

Há que se acrescer a isso o fato de que a cidade de Ubatuba, nos dias de hoje, possui uma dinâmica completamente diferenciada, alterada pelo grande fluxo de migrantes, principalmente daqueles egressos do norte de Minas Gerais e da região nordeste. E o folclore desta região do litoral caiçara paulista, que é tradição e também e principalmente assimilação, sofre com isso um processo de constante ruptura. Essas rupturas, muito embora tênues posto que imperceptíveis ao neófito, vão se acrescentando silenciosa e naturalmente aos entrechos da linha devocional caiçara. Porém alguns pontos da Folia ainda permanece fiel ao formato tradicional. 

Segundo Odaci Araújo, filho e neto de cantadores de Reis, em época não tão recente (1950) ocorreu uma divisão dos Reis em dois grupos: um deles, mais chegado às festas, que terminava sua cantoria em baile; outro, estritamente religioso, encerava no Reis uma verdadeira pregação. Esses fatores dizem respeito mais exclusivamente ao aspecto social que envolvia os respectivos grupos. 

E muitas são as histórias que ligam o caiçara com a devoção e às jornadas dos Reis, a que alguns dão o nome de voto, significando o convite a amigos e companheiros para cantarem juntos a Folia dos Santos Reis. 

A esse respeito Catarina de Oliveira Prado nos contou de viva voz que ao tempo de seu pai, em sua casa, no Perequê-Açú, nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro realizava-se uma devoção com os Santos Reis devido a uma pescaria que ele foi fazer e à qual foi estipulada uma promessa aos Santos Reis. Segundo a tal promessa, se tudo corresse bem ele prestaria homenagem cantando nas festas de reis. À época da promessa, seu pai, que era funcionário público do grupo escolar, então a única escola de Ubatuba, teria sido convidado por alguns companheiros para cantar o Reis, mas, ao invés disso, ele, que gostava muito de caçar e pescar, ao invés de atender ao convite dos amigos, resolveu “botar tróia” respondendo aos amigos: “vou matar alguns peixes para vender e sustentar a família”. Ocorre na pescaria ele sofreu um acidente sendo ferido pelo esporão caudal de uma raia, o qual produziu profundo e doloroso ferimento em sua perna. Socorrido, foi trazido para a cidade onde foi tratado pelo Luiz do Bico o qual foi, “no último quartel da sua vida o coronel Luiz Domiciano da Conceição, prestigioso chefe político do município, merecendo, por seus méritos a perpetuação do nome numa das ruas da cidade” [5]

Pois bem, já tratado, arrependeu-se e prometeu, se ficasse bom, no ano seguinte iria fazer o voto e a devoção aos Santos Reis todo dia 6 de janeiro. Daí por diante, de 1º de dezembro a 6 de janeiro sua casa era toda festa, com aquele povaréu todo, baile, instrumentos de corda, cavaquinho, pandeiro, rabeca... 

Já para Priscila Siqueira, jornalista radicada em São Sebastião, “o Reisado Caiçara é uma espécie de serenata, cantada sempre à noite, e seus participantes não saem caracterizados. No Reisado do Litoral não se pode acender as luzes ou abrir as portas das casas enquanto o grupo de reis está cantando. Nesta manifestação popular, a rabeca, um instrumento muito importante, é normalmente tocada pelo líder do grupo. Como na Folia de Reis, os participantes do grupo de Reisado consideram a música e seus versos verdadeira oração.[6] 

Ocorre que os grupos são montados por volta da época da data católica do Advento formando-se a partir de então uma peregrinação passando alegremente pelas casas levando a “cantoria de reis”. 

De “Os Caiçaras Contam” [7] 
recolhemos os seguintes depoimentos:

“Nasceu Jesus, nasceu Nosso Senhor. 
Nasceu Jesus, nessa noite de amor. 
Nasceu Nosso Senhor, nasceu Jesus. 
O mundo inteiro todo cercado de luz.” 
Versos da Folia de Reis, cantados por Orlando Antonio de Oliveira, 77 anos. 

O folclorista caiçara José Ronaldo recolheu do grupo da praia do Sapé a letra abaixo transcrita: 
1. Ó de casa cavalheiro/ Diga se eu posso entrar/ Se houver algum agravo/ Aí diga que eu quero voltar. 
2. Viemos cantar o rei/ Hoje mesmo que é devido/ Viemos trazer notícias/ Ai de Jesus nascido. 
3. Os três reis encaminharam/ Pelas partes do Oriente/ Chegam na corte de Herodes/ Ai perguntaram de repente. 
4. Onde era nascido/ O verdadeiro Messias/ Rei Herodes respondeu/ Ai eu vou ver na profecia. 
5. Lá na profecia reza/ Que era nascido em Belém/ Ides lá e voltais aqui/ A que eu quero ver também. 
6. Herodes que nem malvado/ Que nem perverso, maligno/ Foi ensinar aos três reis/ Ao as avessas do caminho. 
7. Viagem que era de um ano/ Fizeram em quinze dias/ Porque foram bem guiados/ Ai pelo infante rei-Messias. 
8. Atrás daquela cabana/ Uma estrela aparecia/ Era neto de Sant'Ana/ Ai filho da Virgem Maria. 
9. São José quando se viu/ Entre nobres companhias/ De prazer e de alegria/ Ai não sabia o que fazia. 10.Vinte e cinco de dezembro/ De meia noite pro dia/ Nasceu o menino-Deus/ Ai filho da Virgem Maria. 11.Eu não vos peço ofertas/ Que são coisas de valia/ luz acesa e porta aberta/ Ai e afeição de alegria. 
12.Ó senhor que estais dormindo/ Nesse seu colchão dourado/ Vinde nos abrir a porta/ Ai que aqui estão vossos criados.[8]

Os temas relativos à profecia do nascimento do Menino Jesus sofre variações em face diversos fatores sejam eles de ordem geográfico ou aqueles relativos à capacidade de memorização e à de improvisação do verista que associa variações ao tema central, essencialmente religioso, outros motivos, sejam líricos ou amorosos

 OUTRAS FORMULAÇÕES

Uma tradição centenária da idade do Casarão do Porto 
Folheto distribuído pela Prefeitura Municipal de Ubatuba por ocasião da Folia de Reis/década de 80 

Diz Odaci de Araújo, filho e neto de cantadores de Reis, que foi Baltazar da Cunha Forte quem trouxe para Ubatuba, aproximadamente em 1830, mão de obra mineira para construir sua casa (hoje tombada pelo Patrimônio Histórico e chamada de Sobradão ou Casarão do Porto). Com esse pessoal reviveu-se o costume de cantar ao som da viola, depois do trabalho, várias cantigas e entre elas o Reis (dançava-se também a folha verde, o xiba e outras danças folclóricas). 

Unindo-se com gente da Praia da Fortaleza (ao sul), do Poruba e da Picinguaba (ao norte) e até mesmo de Paraty, vindos a Ubatuba nos tempos áureos do café em busca de trabalho, iniciaram um canto aos Reis baseado no mineiro. Com algumas alterações, ele é entoado até hoje na região.

Mais recentemente (1950) é a divisão dos Reis em dois grupos: um mais chegado às festas, que terminavam a cantoria em baile; outro estritamente religioso, que encarava o Reis como uma pregação. 
Os instrumentos musicais utilizados pelos dois grupos eram quase os mesmos, sempre feitos por aqui e Odaci cita o nome de Benedito Carros como fazedor de viola e rabeca (nome dado ao violino), em nogueira. Para acompanhar o Reis entoado no Centro (religioso), tocava-se viola, rabeca, pandeiro e reco-reco de bambu. O Reis da chamada Rua Nova, mais festeiro, era acompanhado por viola, rabeca, pandeiro, reco- reco e cavaquinho. 
Hoje se usa violão, cavaquinho, clarinete, pandeiro e bumbo. E continua a tradição do “tipe” ou “tripé”, cantor que faz uma voz fina junto aos instrumentos, nas estrofes intermediárias, sem letra.
Como é tradição em todo lugar onde se cantam as Folias (de Reis ou do Divino), os cantadores são recebidos nas casas que visitam com comida e bebida, de preferência não alcoólica. Cantar aos Reis é obrigação que dura sete anos, geralmente iniciada para se alcançar uma graça. 

DUAS LETRAS PARA O MESMO REIS

Há duas letras de Canto de Reis. Uma, mais antiga, não tem autor conhecido e ela tem passado através das gerações. Ela diz o seguinte:
Ó de casa, ó nobre gente
Diga que vos ouvireis 
Uma cantiga excelente 
Que se canta pelos Reis. 

Padeceu nosso Jesus 
Foi arrastado                     Bis
E pregado na cruz 

Os três Reis quando vieram 
Lá da parte do Oriente 
Chegaram à porta de Herodes 
Perguntaram de repente. 

Padeceu nosso Jesus...
 
Aonde era nascido 
O verdadeiro Messias 
Rei Herodes respondeu 
Que ia ver nas profecias. 

Padeceu nosso Jesus... 

Que nas profecias reza 
Era nascido em Belém 
Se fores lá, voltai aqui 
Que eu quero ir ver também. 

Padeceu nosso Jesus...
 
Os três Reis lá do Oriente 
Se puseram em jornada 
Foram dar com Cristo em Roma 
Às horas da madrugada. 

Padeceu nosso Jesus... 

Detrás daquela cabana 
Uma estrela aparecia 
Era o neto de Santana 
Filho da Virgem Maria
Padeceu nosso Jesus... 

Jesus Cristo foi nascido 
No presépio de Belém 
Para todo o sempre, amém. 

FOLIA DE CANTO AOS REIS 

Uma segunda letra da Folia de Reis usa a mesma base da primeira, mas recebeu versos novos há cerca de 30 anos, feitos por Manoel Barbosa, cantador de Ubatuba que passou para seu filho a preocupação de manter vivo no município o costume; o rapaz, conhecido por Mané Babirro, saiu com a Folia até 1983, quando faleceu. Há um novo grupo se apresentando em público, com a intenção de preservar as tradições folclóricas locais.

Ó de casa. Ó nobre gente 
Acordai e ouvireis 
Estes cânticos excelentes 
Que se canta pelos Reis 

Aleluia, Jesus nasceu 
O mundo inteiro 
Da luz se encheu 
Adoramos o Salvador 
Vem nos traze 
Paz e amor. 

Os três Reis quando vieram 
Lá das bandas do horizonte 
Chegaram à porta de Herodes 
Perguntaram de repente 

Aleluia, Jesus nasceu...

Aonde era nascido 
O verdadeiro Messias 
Rei Herodes respondeu 
Que ia ver nas profecias 

Aleluia, Jesus nasceu... 

Nas profecias constava 
Que nascera em Belém 
Ide lá, voltai aqui 
Que eu quero 
Ir ver também. 

Aleluia, Jesus nasceu... 

Em Belém cantaram os galos 
Jesus Cristo já nasceu
 Os anjos cantam hosanas 
E o céu resplandeceu.

 Aleluia, Jesus nasceu. 

O mundo inteiro 
De luz se encheu
Adoramos o Salvador
Vem nos trazer Paz e amor...

Notas:
1 Dante de Laytano – Origens do Folclore Brasileiro – Cadernos de Folclore nº 7, Rio de Janeiro, 1968. 
2 Thereza Regina de Camargo Maia – Paraty religião e folclore 
3 Thereza Regina de Camargo Maia – idem 
4 Folclore Nacional Festas Bailados Mitos e Lendas. Alceu Maynard Araujo. Edições Melhoramentos, 1964.
5 Oliveira, Washington de. A Farmácia do Filhinho. Ubatuba. 1989.
6 Priscila Siqueira, “Crianças comandam a Folia de Reis”, in O Estado de São Paulo, 09/JAN/1982. 
7 Marcos Frenette, “Os Caiçaras Contam”, Publisher /Brasil, /São Paulo, 2000.
8 Cantiga dos Santos Reis - Crônica do Zé - Jornal “A Cidade”, 22/23 de março de 2014 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

São José de Anchieta

Fragmentos de sua vida em Ubatuba, a pacificação dos índios e o poema de exaltação à Virgem Maria

Por: Arnaldo Chieus



Apresentação

Este trabalho do Colégio Dominique (Ubatuba, SP) e do Instituto Salerno-Chieus é mais uma das atividades da Biblioteca Hans Staden, criada em agosto de 1989. 

Esta apostila é um resumo elaborado a partir de notas de leitura que se constituíram numa comunicação oral, em abril de 2023, destinada a professores da rede municipal de ensino de Ubatuba (SP), durante atividade pedagógica de instrução continuada patrocinada pela agência local do banco SICREDI. Versa sobre aspectos da vida de São José de Anchieta, especialmente do tempo em que viveu na orla de Ubatuba, em 1563. Neste período se discutia o acordo de paz entre dois grupos: o primeiro, formado por nativos tupinambás e demais tribos da Confederação dos Tamoios, aliados dos franceses estabelecidos na baía da Guanabara; o segundo, os tupiniquins, aliados dos colonizadores portugueses. Do trabalho do padre José de Anchieta, em parceria com o padre Manuel da Nóbrega, resultou o fim das contendas, graças ao estabelecimento do primeiro tratado de paz das Américas, denominado Paz de Iperoig, em 14 de setembro de 1563.

São José de Anchieta

Padre José de Anchieta, canonizado como São José de Anchieta pela Igreja Católica Apostólica Romana, viveu em Ubatuba, na aldeia Iperoig, no ano de 1563. Naquele ano, juntamente com o padre Manuel da Nóbrega, intermediou a pacificação dos índios locais, os tupinambás. Os canibais nativos, associados a franceses que ocupavam o Rio de Janeiro, com o nome de França Antártica, rivalizavam com os colonizadores portugueses. Os tupinambás dominavam o litoral entre Bertioga e Cabo Frio. 

Em Ubatuba, aonde chegaram procedentes de Itanhaém e Peruíbe, logo após o período de quaresma do calendário religioso, os dois sacerdotes prepararam um protocolo para por fim às hostilidades entre portugueses e tupinambás e seus aliados franceses. 

Para chegarem a Ubatuba, Anchieta e Nóbrega, foram transportados, entre os dias 18 de abril e 06 de maio de 1563, por embarcações do amigo José Adorno. A expedição marítima foi capitaneada pelo próprio Adorno, para que os padres tivessem a oportunidade de parlamentar com os chefes tupinambás e negociar a paz definitiva com os portugueses. 

Tratado de paz 

O Armistício de Iperoig ou Paz de Iperoig foi o primeiro tratado de paz nas Américas e foi ratificado em 14 de setembro de 1563. Para que as conversações se frutificassem, José de Anchieta se dispôs a ficar em Ubatuba, como refém dos indígenas, enquanto Manuel da Nóbrega e um filho do cacique Cunhambebe, líder regional dos tupinambás, seguiam até São Vicente, a fim de definirem as negociações de paz entre os nativos da Confederação dos Tamoios e os portugueses. 

Enquanto esteve em Ubatuba, escreveu, nas areias da praia a sua principal obra, o Poema à Virgem. O título original era “De Beata Virgine Del Matre Maria”. São 5.786 versos em latim. Segundo a tradição, ele rascunhou a obra nas areias de Ubatuba e memorizou os versos para, mais adiante, em São Vicente, passar para o papel. 

A Confederação

A Confederação dos Tamoios (cujo significado é “antepassados”) era um agregado de forças. A coalizão foi definida na localidade de Mangaratiba, no litoral fluminense, reunindo os chefes Aimberê, da aldeia de Ubatuba (Uwatiby)*, Pindobuçu, de Iperoig, Koaquira e Cunhambebe, de Ariró, e Guayxará, de Taquarussu-tyba. 

Sob a liderança de Cunhambebe e apoio de outras nações indígenas, como os goitacazes, carajás e aimorés, os tupinambás estabeleceram uma aliança contra os tupiniquins e portugueses. Para insuflar o levante contra os colonizadores, os franceses, interessados em se apossarem da baía da Guanabara e imediações, forneceram armas para a confederação. No período dos embates, Cunhambebe veio a falecer por infecção e foi sucedido na liderança por Aimberê. Entre suas ações, houve a tentativa, em vão, de cooptar os tupiniquins para que estes abandonassem os portugueses e se aliassem à Confederação dos Tamoios. 

As etnias conflagradas situavam-se ao longo do Vale do Paraíba, do litoral e da baía da Guanabara. A guerra foi travada, de um lado, pelas tribos tupinambás, reunidas sob o nome de Tamoios, e aliadas aos franceses que, estabelecidos na colônia da França Antártica, a partir de 1555, disputavam a região do Rio de Janeiro com Portugal; de outro lado, pelos portugueses aliados aos tupiniquins, que tentavam estabelecer seu empreendimento colonial e subjugar a revolta. 

A luta só terminou com a chegada de reforços portugueses, com o capitão Estácio de Sá, o que deu início à expulsão dos franceses e a ---------------------------------------------------------------------------------------- * Uwatiby é variação de Uwattibi, vocábulo escrito por Hans Staden, no livro “Viagem ao Brasil”, de 1557. A palavra passou de Uwattibi para Uwatiby, Uwatibi e Ubatyba, até a atual grafia Ubatuba. Plínio Airosa, em “Primeiras Noções de Tupi”, anota o vocábulo como “Uyba-tuba”. dizimação de seus aliados tamoios. A guerra é relatada, em parte, nos escritos do mercenário alemão Hans Staden, que foi prisioneiro dos tupinambás na região de Ubatuba, por nove meses, tendo acompanhado o chefe Cunhambebe em expedição bélica contra os portugueses e tupiniquins na região de Bertioga. 

Com a interferência dos jesuítas Nóbrega e Anchieta, fundadores de São Paulo, uma trégua foi selada no episódio conhecido como Armistício de Iperoig, no qual os portugueses foram obrigados a libertar todos os indígenas escravizados. 

José de Anchieta 

O padre José de Anchieta, jesuíta da Companhia de Jesus, nasceu em 19 de março de 1534, em San Cristóbal de la Laguna, Ilha de Tenerife no arquipélago das Canárias, Espanha . Faleceu, no Brasil, em 9 de junho de 1597, na localidade Reitiba ou Iriritiba, hoje município de Anchieta, estado do Espírito Santo. Seus restos mortais jazem no Palácio Anchieta, em Vitória (ES). Foi beatificado em 22 de junho de 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 3 de abril de 2014, pelo papa Francisco.


Anchieta, com 19 anos de idade, chegou ao Brasil em 1553, a bordo da caravela que também trazia de Portugal o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, recém-nomeado pelo rei D. João III. Alguns meses depois de embarcar na Bahia, Anchieta já era um dos mais requisitados evangelizadores jesuítas. Recebeu, por exemplo, a incumbência de ajudar a fundar um colégio da Companhia de Jesus no planalto de Piratininga. Assim o fez, em 25 de janeiro de 1554, juntamente com o padre Manuel da Nóbrega, o que deu origem à cidade de São Paulo. 

Em 2023, vários templos reverenciam seu nome, como o da Catedral de San Cristóbal de La Laguna, nas Ilhas Canárias; e, no Brasil, do Santuário Nacional de São José de Anchieta, na cidade que leva o seu nome. A festa litúrgica em sua honra é celebrada em 9 de junho. Foi designado Copadroeiro do Brasil. As principais homenagens ao santo que viveu uma parte de sua vida em Ubatuba são: Rodovia Anchieta, em São Paulo; Monumento ao Padre José de Anchieta em Tenerife, Espanha; Discursos pronunciados em sessão solene no Congresso Nacional, em 24 de junho de 1980; Estabelecimento do dia 9 de junho, como Dia de São José Anchieta; Denominação de Palácio Anchieta à sede do governo do Espírito Santo; Estátua do Padre José de Anchieta, em São Vicente (SP). Em Ubatuba (SP), um monumento na praia Iperoig - com uma estátua de Anchieta, rodeada por estátuas de índios - exalta a celebração do tratado Paz de Iperoig. Além disso, o dia 14 de setembro é feriado no calendário oficial da cidade, em reverência à proclamação do armistício em 14 de setembro de 1563. Ainda em Ubatuba, um acidente geográfico tem o seu nome: Ilha Anchieta.

José de Anchieta ingressou na missão eclesiástica em Portugal. Era gramático, dramaturgo e poeta. No Brasil, viveu em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Criou a primeira cartilha em língua tupi. Escrita em apenas 6 meses, descreveu e sistematizou no papel uma língua nova, até então apenas oral, baseando-se no modelo estrutural do latim. Com o nome “Artes de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”, foi impressa em 1595, em Coimbra, Portugal. A gramática de Anchieta foi a segunda gramática de uma língua indígena. A primeira tinha sido a Arte de la Língua Mexicana y Castellana, do frei Alonso de Molina, publicada no México em 1571. 

Graças ao seu magnífico trabalho, o padre Anchieta realizou um dos princípios básicos da Companhia da Jesus: o de que todos os missionários deveriam aprender a língua da terra onde exerciam seu ministério, para empregá-la em vez de seu próprio idioma. De sua gramática foram lançadas 7 edições. Da primeira edição sabe-se de três exemplares: Um na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; outro na Biblioteca Vittorio Emanuele, Roma; e o terceiro no Arquivo da Companhia de Jesus, Roma. A partir da gramática de Anchieta iniciou-se o estudo do tupi, em Salvador, no colégio jesuíta. Aprender tupi valia para todos os que exerciam os serviços catequéticos missionários.

Anchieta escreveu poesias, cartas e autos. O conteúdo dos seus textos se referia aos conceitos morais, espirituais e pedagógicos. Inicialmente redigiu em castelhano e em latim. Depois, traduziu para o idioma português e para o tupi. 

Catequese 

Padre José de Anchieta dedicava-se a catequizar os indígenas, isto é, apresentar-lhes os preceitos cristãos. Tinha, ainda, especial atenção em se comunicar com os nativos. A preocupação com a língua local girava em torno da dificuldade que seria europeizar o novo mundo conquistado, sem se fazer compreender por seus moradores. Em São Vicente, entre os tupiniquins, aprendeu a língua tupi. Em 1595, escreveu “Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, a primeira gramática do Tupi - Guarani. 

Em menos de meio século os jesuítas ganharam a confiança dos nativos e transmitiram os preceitos e comportamentos cristãos. Tornaram-se, assim, a mais potente organização a serviço da Igreja Católica, nas palavras do estudioso em comunicação Luiz Beltrão, no livro “Folkcomunicação”. O êxito se deveu em grande parte ao esforço descomunal do padre José de Anchieta que, por décadas, observou as festas e rituais dos tupinambás e de outras tribos com os olhos de um antropólogo. 

“A noção de cultura histórica, dinâmica e flexível permite perceber nas inúmeras contradições presentes nos textos e discursos dos inacianos a imensa complexidade das relações de contato. Nessa perspectiva, os índios tornaram-se sujeitos ativos na colonização, respondendo a ela de formas variadas, buscando também, nas relações com os europeus, vantagens e benefícios de acordo com as culturas e organizações sociais, que igualmente se alteram no decorrer do processo histórico. É o que se pode depreender da vasta e diversificada obra de Anchieta, que inclui a Gramática da Língua Tupi, várias informações sobre a terra, seus habitantes e o desenvolvimento da colonização, cartas, poemas e os famosos autos” (Almeida, 1998). 

A atuação de Anchieta como catequista foi numa fase inicial de sua vivência no Brasil Colonial. Logo em seguida dedicou-se, principalmente, à instrução dos filhos dos colonos portugueses. Fez isto paralelamente aos estudos da língua e dos costumes dos gentios. Desta forma produziu uma vasta obra evangelizadora. 

Anchieta em “Terra Tamoia”

Em referência a José de Anchieta, a escritora Idalina Graça, nascida em Ilhabela e radicada em Ubatuba, no livro “Terra Tamoia”, às páginas 55 e 56, estampa:

O velho relógio da Matriz, na sua imperturbável marcha através das coisas e do tempo, marca meio dia. A praia, em quietude, vive nesse momento uma de suas horas mais belas, principalmente para os que compreendem a poesia do silêncio. Minha alma enxerga, nessa mansidão das coisas paradas, uma possibilidade de fuga para a região dos sonhos. Vai longe meu pensamento, como um corcel alado, vivendo outra personalidade. Volto ao passado, às mesmas praias aonde divago sentindo as carícias das alvas espumas eu vêm tocar meus pés descalços. Longe do mar, na verde e prata, sob o céu vivo e azul, emoldurado por um continente de sonhos, revela a inigualável artista, fonte prodigiosa de poesia, a Natureza. Na areia, matizada de conchas, o sol brinca, dourando-as. Meu espírito retrocede aos séculos que se foram. Impulsionada pela brisa do norte, balouça mansamente nas águas de Iperoig uma galera portuguesa. Um luso de compleição robusta, feições ríspidas, pele marcada pelo sol e pelos ventos dos trópicos, olha a beleza daquele quadro e seu pensamento vai longe.

– “Terra dos meus pais, jamais voltarei a ti! Não espero ter a ventura de voltar a estreitar nos braços os entes a quem amo e que lá ficaram! Nunca mais o meu olhar cruzará com o da mulher que tanto amei, nem verei o rouxinol em meu velho Portugal construir seu ninho junto à casa de meus pais!”. Assim meditava o português, levado pela saudade do povo distante, olhando as vagas esfrangalhando-se em cascaras de espumas reluzentes, nos rochedos de Iperoig. Mão amiga pousou-lhe sobre os ombros. Ouviu-se a voz meiga e suave de seu companheiro de exílio a murmurar-lhe aos ouvidos, diante daquele cenário agreste da terra brasileira, a mensagem de fé: – “Seremos fortes como as rochas que nos desafiam e nada nos poderá deter no áspero caminho! Nossa cruz não será demasiado pesada! O momento que passamos é digno de ser vivido! Tens, à tua frente, um futuro de glórias, terras a conquistar, gentios a dominar, e um dever a cumprir perante Deus e a Pátria”

Com a serenidade dos iluminados, assim falou o meigo filho de Tenerife ao moço português, levando esperança outra vez ao espírito vacilante do ousado navegante. E o luso, unindo o próprio pensamento ao de Anchieta, agradeceu a Deus o conforto com que o revigorava naquele instante. No dia seguinte, quando o sol veio, outra vez, iluminar a terra escolhida para abrigar o Santo Missionário, ali já não encontrou aquele homem dominado pelo desalento, que tivera um instante de desânimo diante da imensa tarefa que lhe coubera. Para o lusitano, em busca de outras paragens, misteriosas e desconhecidas, levando em sua galera um arsenal de esperanças, sonhos e ilusões, tendo por bússola aquela extraordinária fé, que Anchieta lhe transmitira nas alvas areias de Iperoig.

O jesuíta solitário une sua voz ao marulho das vagas, sem temer perigos, esperando sempre a cruel flecha dos Tamoios. Tomba os joelhos na areia úmida e ergue ao céu uma prece por toda a humanidade. Outrora, assim vibrou a fé de Anchieta.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Maria Regina Celeste de. Anchieta e os índios de Iperoig: reflexões sobre suas relações a partir da noção de cultura histórica. Revista de Ciências Sociais, v.29 N.1/2, 1998. 
ANCHIETA, Padre José. Cartas Inéditas. Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, edição comemorativa do 4º centenário. São Paulo, 1900. 
CONFEDERAÇÃO dos Tamoios. In: www.pt.wikipedia.org, acessada em Nov de 2023. GRAÇA, Idalina. Terra Tamoia. Editora Martins, São Paulo, 1967. 
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Marburgo, Alemanha: 1557. Republicação da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: 1988. 
VIEIRA Celso. Anchieta. Cia. Ed. Nacional, 3ª edição, São Paulo, 1949. Índice Página Apresentação 3 Padre José de Anchieta 4 Tratado de Paz 4 A Confederação 5 José de Anchieta 6 Catequese 8 Anchieta em “Terra Tamoia” 9 * * *

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A Catequese Indianista de José de Anchieta

por Arnaldo Chieus

O retrato que fazemos de Anchieta ainda hoje é o mesmo que fixamos na infância, traçado nas gravuras de nossos livros escolares ajudando a compor nossa imaginação figurativa. Aquele jovem padre de batina com os pés descalços sobre as areias de Iperoig traçando os versos latinos do longo poema dedicado à Virgem Maria, do qual era devoto desde o início de sua formação jesuítica.

Anchieta era espanhol insular, nascido em Tenerife, no arquipélago das Ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Aos 14 anos foi com sua família para Coimbra, em Portugal e três anos mais tarde ingressou na Companhia de Jesus para dar início à sua formação sacerdotal.

Aos 19 anos e ainda noviço foi convocado pelo padre Manoel da Nóbrega para compor juntamente com outros membros da Companhia de Jesus a segunda grande expedição portuguesa ao Brasil Colônia, acompanhando o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, em 1553.

Seu trabalho evangelizador e catequético começou logo em seguida à sua chegada, juntando-se a Manoel da Nóbrega na missão de pacificação dos Tamoios em Iperoig, onde ficou por aproximadamente sete meses.

A respeito da passagem de ambos por Ubatuba, Idalina Graça, no seu livro “Bom dia Ubatuba”, assim se refere com sua peculiar poética em prosa:

“Debruçado nas verdes colinas do Itaguá, namorando eternamente o mar, o morro do Jundiaquara se destaca grandioso e imponente, guardando em si estranhos mistérios do passado. Foi neste local que, em idos tempos, Nóbrega e Anchieta, unidos em missão de catequização entre os nativos Tamoios descansavam de árduas lutas e uniam suas vozes com as vibrações do espaço, rogando ao Pai Todo Poderoso por aqueles que estavam por vir.” [1] 

E Paulo Camilher Florençano, também se reportando ao mesmo episódio histórico:

Era o ano de 1563. Dois religiosos da ordem dos jesuítas, o mais velho, o padre Manoel da Nóbrega, o outro, o ainda noviço José de Anchieta, este, na força dos seus sadios 29 anos. Eles haviam chegado a Iperoig sozinhos, desarmados e desprotegidos. Iam tentar estabelecer tratado de paz com aqueles valentes e perigosos selvagens, que, já por várias vezes, haviam posto em perigo o trabalho de colonização encetado pelos portugueses, não só na faixa litorânea, como até no planalto. As conversações iniciaram-se promissoramente, e, dois meses depois, o padre Nóbrega retornou a São Paulo levando as condições de paz. Deixava, no entanto, servindo como refém – aquele jovem religioso, livre, sozinho e pleno de mocidade.

E, aí, então, o extraordinário: – nada aconteceu!

Para livrar-se de tentações, a fim de que os seus votos de castidade não viessem a ser quebrados, Anchieta cansava seu corpo com longas caminhadas, e o espírito compondo nas areias da praia de Iperoig, e, latim perfeito, lindos e fervorosos versos em louvor a Virgem Santa. E assim, pode ileso do pecado, passar os longos dias em que aguardava o retorno do padre Nóbrega. [2]

Homem profundamente versátil, Anchieta aprendeu a língua dos indígenas, sendo essa uma das características dos jesuítas em missões pelo mundo: aprender a língua nativa para divulgar a crença e trabalhar a catequese na língua do povo receptor. Desde o primeiro contato com os nativos da nova terra, Anchieta mostrou seu espírito arguto e observador. E nesse sentido,  inspirando-se nos costumes e práticas indígenas foi que desenvolveu seu espírito evangelizador para desenvolver sua catequese.

Portanto, para melhor exercer sua missão evangelizadora e pedagógica com a preocupação didática religiosa Anchieta teve que aproximar seu interesse pelo nativo aprendendo sua língua e conhecendo seus costumes. Aproveitando os padrões culturais indígenas de comportamento, estudou o tupi para entrar no mundo primitivo dos nativos.

Sua vinda para o Brasil na expedição que trouxe o segundo governador geral do Brasil, não foi obra do puro acaso. José de Anchieta não era apenas um simples noviço. Ele já conhecia três línguas com bastante desenvoltura: sua língua mãe, o espanhol, o português e o latim. Já no Brasil pode desenvolver sua técnica de poeta plurilíngue. Ao mesmo tempo em que se inscreve na longa e vigorosa tradição da poesia latina tenta a criação de uma poesia tupi, não folclórica, mas literária. [3]

O papel de Anchieta foi de verdadeiro precursor da nacionalidade brasileira, integrando o gentio com o português e a tradição linguística indígena com a cultura católica. “Aproveitando os padrões culturais indígenas de comportamento, estudou o tupi para entrar no mundo primitivo”, impregnando a poesia, o teatro e o canto como instrumentos de catequização sendo possivelmente o primeiro europeu a fazer uso ds práticas desses povos para os fins da catequese..

Dessa maneira, como bem afirmou Cassiano Ricardo, “praticou Anchieta um indianismo ao vivo”. Sendo fato de suma importância e remontando à nossa origem literária esse “indianismo brasileiro já está em nossas primeiras letras”.

E toda essa versatilidade linguística e seu indianismo estão em ter escrito poemas na própria língua do índio. Mas – e isto é o que desejo afirmara – não está só em ele ter escrito orações em tupi e sim por dois outros motivos: a) por fazer do índio um tema de ficção; b) por toma-lo como personagem dos seus autos.

A catequese indianista era a principal função de sua pedagogia com preocupação didático religiosa. Para tanto usou de suas poesias e peças de teatro para auxiliar na conversão dos indígenas ao catolicismo. Sob essa ótica escreve a primeira gramática de língua tupi posto que a apreensão da língua dos gentios era de importância tanto para sua pregação evangelizadora quanto para os colonizadores.

Anchieta soube fazer-se entender por todas as faixas etárias, sempre considerando os entraves da comunicação proporcionados pela diferenciação linguística. A doutrinação de forma sistemática e contundente tocou diretamente na mente do nativo provocando analogias com as ideias de seu próprio mundo.

Na sua poética latina a figura da Virgem Maria é a grande merecedora da das invocações anchietanas. O marianismo sempre gozou de grande prestígio dentro da Companhia de Jesus e no catolicismo em geral.

Se considerarmos todos os poemas de Anchieta, nos quatro idiomas que eles utilizou, português, espanhol, latim e tupi poderíamos chamar sua devoção religiosa de matriarcal, lembrando ainda que o principal objeto de sua mais linda epopeia latina – De Beata Virgine Dei Matre Maria – foi a figura de Maria, a mãe de Jesus. 

Conforme preleciona Alfredo Bosi  esse poema, escrito na métrica de Virgílio é um poema do renascentismo clássico. O que de certa forma é um tanto atípico porque Anchieta é um espírito medieval. E muito embora sua catequese se mantivesse tradicional ele foi capaz de escrever um poema no latim clássico conforme preconizava o renascimento. [4]

E como afirmou Emanuel de Moraes, é certo que a poesia de Anchieta se integrou, quer pelo exercício de sua irrepreensível vocação de apóstolo, quer por haver compreendido a missão superior de poeta, não se guardando entre as preces do claustro ou nos esquálidos louvores aos poderosos. Ao contrário, conduziu-se pelo desejo de dar condições reais de vida feliz ao seu rebanho. Dessa forma pode-se afirmar que sua poesia se integrou no complexo cultural criador, em solo brasileiro, de novas manifestações da linguagem, literatura e humanismo participante. [5]

Uma de suas composições mais belas pela ingenuidade e singeleza, que chegam a ser surpreendentes sabendo-se escrita por um humanista de sua categoria é Ao Santíssimo Sacramento. [6] 

Ó que pão, ó que comida,
ó que divino manjar se nos dá
no santo altar
cada dia!
......................................................................
Vinde, pobres pescadores
a comer!
Que este manjar tudo gasta,
porque é fogo gastador,
que como seu divino ardor
tudo abrasa.
Tal al é desatino,
se não comer tal vianda
com que a alma sempre anda
satisfeita.

Cassiano Ricardo foi um dos primeiros a reconhecer não apenas as qualidades literárias de Anchieta, mas, também, reconhece-lo como o fundador de São Paulo e tê-lo por santo muito antes de sua canonização. De suas qualidades literárias “se pode dizer que foi ele o nosso primeiro indianista”. “Em latim, português, castelhano ou tupi ficaram fragmentos de sua obra.”

O seu indianismo está em ter escrito poemas na própria língua do índio. Mas – e é isto o que desejo frisar – não está só em ter escrito orações em tupi e sim em dois outros motivos: a) por fazer do índio um tema de ficção; b) por toma-lo como personagem dos seus autos. [7]

No decorrer de sua vasta obra José de Anchieta revela suas características humanísticas ao refletir inúmeras vezes sobre os limites e fraquezas de sua condição humana: o amor e o ódio; a coragem e o medo; as certezas e as dúvidas. Todas são peças que se articulam nas diversas atitudes vividas e narradas por ele.

A obra do Pe. José de Anchieta é composta por cartas, sermões, poemas e peças teatrais sobre o Brasil nos primórdios da fase colonial. Sua grande contribuição como precursor da nacionalidade brasileira “integrou o gentio com o português, a tradição linguística indígena com a cultura católica” de seu tempo, conseguindo fazer seu trabalho catequético como obra verdadeiramente participante.

No transcurso de sua vida, José de Anchieta, o jovem e neófito missionário jesuíta que veio ao Brasil Colônia com seu conhecimento e cultura medieval deixou fluir seu indiscutível talento no ofício das letras. E através da dinâmica de seu trato evangelizador foi capaz de fornecer para as gerações futuras não apenas a situação colonial do século XVI, mas, também, a sua consciência religiosa e etnográfica.

No rico itinerário poético brasileiro, a vida e a obra de José de Anchieta foi bastante reverenciada por inúmeros artífices do lirismo nacional. Desse imenso ideário destacamos dois autores de distintas linguagens imagísticas que refletem de modo fortemente substantivo a figura de Anchieta.

De Guilherme de Almeida:
Prece a Anchieta [8]
Santo: erguestes a cruz na selva escura;
Herói: Plantastes vossa velha aldeia;
Mestre: ensinastes a doutrina pura;
Poeta: escrevestes versos sobre a areia!
Golpeia a cruz a face inculta e dura;
Invade a vila multidão alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia...
Santo, herói, mestre e poeta:
– Pela glória que destes a esta terra e a sua História,
Pela dor que sofremos sempre nós.
Pelo bem quisestes a este povo,
o novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!

De Cecília Meireles:
História de Anchieta (fragmento[9]
“Vede Anchieta, o Santo
que louvara a Virgem
em tão longo canto,
a estender nas mãos
versos e milagres
para seus irmãos.”

[1] Bom dia Ubatuba, pg. 68.

[2] Em Ubatuba, o impossível acontece”, in Bom dia Ubatuba, pg.15.

[3] Cf. Wilson Martins. História da Inteligência Brasileira, vol. 1, pg. 31.

[4] Dialética da Colonização

[5] O milagre Anchieta. Emanuel de Moraes. Revista da Academia Brasileira de Letras, junho, 1964.

[6] Sabiá & Sintaxe, pg. 96. Cassiano Ricardo. São Paulo, 1974.

[7] Sabiá & Sintaxe, pg. 98. Cassiano Ricardo. São Paulo, 1974.

[8] Messidor

[9] Crônica Trovada da Cidade de San Sebastiam in Poesia Completa, vol. 5, p.223. Ed. Civilização Brasileira/INL. 1974.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

A VIDA PRESENTE


                                                                                                              
(uma quase resenha)
por Arnaldo Chieus 

Este pequeno livro de poesias de autoria de Hélio Pinto Ferreira, magro em número de páginas, é permeado de questionamentos existenciais num misto de imagens caleidoscópicas em alto grau de espontaneidade poética. Em seus vinte e três poemas curtos o lirismo hirto de Hélio Pinto Ferreira se expõe por completo.

Poeta de um lirismo natural, sua poesia humanística transcende o limite meramente individual para pousar nas reentrâncias do cotidiano comum, 

Onde há rosas tresmalhadas 
Onde as lâmpadas substituem estrelas. 

E onde seu caminho se apega às íntimas dobras de sua condição humana. 

Joseense e valeparaibano, em sua poesia o discurso poético é uma forma de conhecimento – autoconhecimento – e aqui recorro a uma associação feita por Nereu Correa posto que sentimos o poeta na onda lírica que envolve sua mensagem. 

Em seus próprios questionamentos existenciais o poeta expõe os dramas e inquietações de seu tempo presente:

O que será de meu trigo
 Se a liba não tem abrigo
 Se a fome não tem manhã?

A vida presente não se restringe às condições meramente temporais. Não são poemas, poemetos, quase poemas. É o canto resistente da sua visão da paisagem humana construída com rigor, na ternura de um verso, na beleza de uma flor, jogando com o verso num caleidoscópio fixando sua imagética a uma absoluta subordinação à realidade. 

Por mais uma vez sirvo-me do exemplar ensaio de Nereu Correa a respeito da poética de Cassiano Ricardo para referir-me aos versos de A Vida Presente de Hélio Pinto Ferreira. Não há lugar comum na desenvoltura de sua linguagem lírica capaz de captar os secretos mecanismos para convertê-los em linguagem poética.¹ 

O livro nos traz todo um fluxo criativo natural em suas expressões líricas nos pondo diante d’ 

a ternura de um verso 
a beleza de uma flor.

Esse corte/recorte nos revela o estado de madureza de seu discurso circunstancial aproximando-se num contínuo da marcha poética de Cassiano Ricardo. 

Poeta, jornalista, advogado, Hélio Pinto Ferreira nasceu em São José dos Campos em 12 de maio de 1922.

 Formou-se em direito pela Faculdade de Direito do Vale do Paraíba na sua primeira turma, em 1958. Além de advogado também atuou como repórter e cronista em diversos jornais joseenses.

Sua inclinação para a poesia se manifestou a partir da adolescência, influenciado principalmente pela poesia de Cassiano Ricardo, com quem teve breve convivência à época da criação da Semana Cassiano em homenagem ao grande poeta joseense. Convivendo com líderes da imprensa local e outros entusiastas da literatura, deu à luz seus primeiros poemas, futuramente enfeixados nos livros “A Vida Presente” e “Pequena Antologia Poética”, ambos sob o selo da antiga Livraria São José, do Rio de Janeiro. 

Fez parte do núcleo criador da Semana Cassiano Ricardo, nos idos de 1967, juntamente com Roberto Wagner de Almeida, Altino Bondesan, Mário Otoboni, Pedro Paulo Teixeira Pinto, José Madureira Lebrão, Olney Borges Pinto de Souza, entre outros nomes ligados à vida cultural e artística de São José dos Campos. Ainda na área cultural foi um dos fundadores da extinta Sociedade Joseense de Cultura ao lado de Brasílio Duarte, Olney Borges Pinto de Souza, Domingos de Macedo Custódio, Breno de Moura, Francisco Pereira da Silva (Chico Triste), Armando Cobra, entre outros. 

Por ocasião da IX Semana Cassiano Ricardo integrou a comissão que foi à Academia Brasileira de Letras para a entrega do retrato de Cassiano Ricardo em óleo sobre tela de autoria do pintor joseense José Carlos Queiroz. 

Ao penetrar no universo lírico de Hélio Pinto Ferreira não deixamos de notar um “quê” da seiva lírica de Cassiano Ricardo. O filtro poético de sua práxis abriga recurso de originalidade (no que me valho de um conceito de Nereu Correa), revelando amadurecimento seu natural amadurecimento lírico.

Esse fazer poético foi se consolidando lentamente ao sabor das amizades que se fortificaram em torno da linguagem proso/poética de Cassiano Ricardo. E da consolidação desse diálogo foi surgindo, delicadamente, a suave cançoneta de seus versos livres, “arquitetando o poema”, “no mais leve sentir do mundo”.

A Vida Presente” teve sua impressão concluída em agosto de 1965, sob o selo da Livraria São José, local icônico do Rio de Janeiro que reunia os grandes escritores daquela época entre seus fiéis frequentadores. O livro é dedicado a Carlos Ribeiro, “o mercador de livros, mas antes de tudo o batalhador pela cultura brasileira, a estima e a gratidão do autor”. 

Hélio Pinto Ferreira faleceu em 13 de junho de 1989, na cidade de São José dos Campos e deixou as seguintes obras: 

Seis Poemas Inéditos, 1961;

Monólogo do bacharel e outros poemas, Rio de Janeiro, RJ, 1962; 

Pequena Antologia Poética, Rio de Janeiro, 1963. 

A Vida Presente (poemas), Rio de Janeiro, 1965; 

13 Poemas num Cordel, 1982.

Em homenagem ao poeta a prefeitura de São José dos Campos criou a Biblioteca Hélio Pinto Ferreira, que está localizada na Rua Prof. Henrique Jorge Guedes, 57, no bairro Jardim das Indústrias, contando com excelente infraestrutura de atendimento ao público consulente além de área para exposições temporárias. A Biblioteca Hélio Pinto Ferreira funciona de segunda a sexta-feira, das 8h15 às 11h45/13h15 às16h45.

SELEÇÃO DE POEMAS 

1. POEMA 
Que será de meu trigo
 se a loba não tem abrigo
 se a fome não tem manhã? 

 Cresce a tarde nas fogueiras...
 que será de meu carneiro
 que será de minha lã? 

 Desce a noite nos desvelos 
 vai desfiando os novelos 
de infindável tecelã.

Que será da semeadura
 para o instante da fartura
desta terra de amanhã? 

2. ATITUDE 
Por este caminho eu não vou 
eu vim. 
O céu se retesa 
e há rosas tresmalhadas
a beira-rio. 

Não posso mais cindir estradas 
sob a poeira. Minha capa 
 é translúcida e tenho amor às montanhas. 

Percorrer o percorrido 
com o chapéu das acácias 
na cidade onde lâmpadas substituem estrelas. 

Poeta no mais leve sentir do mundo 
arquitetar o poema. 

3. AURORA ENSANGUENTADA 
Uma flor na rodovia 
na roda viva do dia 
 caída, esfacelada! 

Como pode a geografia
na triste heliografia 
ser-se rude numa estrada 

 a ponto de a poesia 
 romper a fotografia
 de uma rosa macerada

 e marcar na biografia 
 de uma vida que se ia
 a aurora ensanguentada? 

4. QUASE POEMA 
Do enigma e do mistério surge o ser 
para a triste paisagem humana. 

O homem vive e se prolonga 
na espécie: a vida desengana, 

e ele engana a existência 
em cego engano que o engana 

até que um dia parte num esquife 
 esquecido de sua própria canção. 

5. CANÇONETA 
Rosa morta dos acasos 
Que fizeste esta manhã? 
        Que âncora te conduziu? 
        Por que estrela te guiaste?

Ridente era o teu destino,
Rosa, Rosa, meu amor. 
        Não há penas, nem desculpas, 
        sob um céu de garças tontas.

Sobe os píncaros dos montes
grito solto nos rochedos. 
        Que é feito de teu sorriso? 
        Quem crestou as tuas pétalas? 

Teu silencio é de túmulos
entre goivos e ciprestes. 
        Quem manchou-te a formosura, 
        Rosa, Rosa, meu amor

[1] Cassiano Ricardo o Prosador e o Poeta, p. 57.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ABC PAULISTA: 1550-1892


Autor: WANDERLEY DOS SANTOS
Uma resenha por Arnaldo Chieus

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ABC PAULISTA: 1550/1892 publicado pela prefeitura de São Bernardo do Campo em 1992 é o livro que veio consolidar o nome de WANDERLEY DOS SANTOS como um dos mais importantes historiadores do Estado de São Paulo. Com uma vida toda dedicada à pesquisa da história regional, desde seus 15 anos o então adolescente começou a investigar a formação dos bairros paulistanos, estendendo suas pesquisas até a região do Grande ABC e, posteriormente, a outras regiões paulistas. 

Entre seus primeiros trabalhos de fôlego foi a História de Ribeirão Pires, de 1973, quando contava com 21 a 22 anos de idade. A partir de então, dedicando-se exclusivamente à pesquisa histórica produziu inúmeras monografias entre as quais se destacam a história dos municípios de Mauá e Rio Grande da Serra, ambos da Região da Grande São Paulo. Em 1980 sua pesquisa história sobre o bairro da Lapa foi premiado pela Prefeitura da capital no concurso de monografias sobre a história dos bairros de São Paulo. A partir de então passou a dedicar-se à pesquisa histórica integrando o corpo de funcionários da Cúria Metropolitana de São Paulo sendo chefe de seu Arquivo Histórico. 

A partir de então tece início seu mergulho profundo nas fontes da historiografia regional principalmente na leitura e interpretação de documentos manuscritos. Esse seu conhecimento em paleografia foi sendo desenvolvido a medida que seu trabalho era desenvolvido e suas pesquisas continuavam, o que foi um fator preponderante na elaboração de um rico fichário que foi crescendo ao longo do tempo e serviu de fonte para grande parte de seus trabalhos. Hoje sabemos que ao menos parte desse considerável acervo está sob a guarda da Seção de Pesquisas e Documentação da cidade de São Bernardo do Campo. 

Dedicando-se ao estudo das fontes historiográficas da região do Grande ABC paulista produziu inúmeras monografias abordando a formação histórica dos municípios de Mauá, Diadema e Rio Grande da Serra. Também se dedicou ao estudo da formação histórica dos bairros de São Paulo. Em 1980 sua monografia sobre a história do bairro da Lapa foi premiada pela Prefeitura de São Paulo. 

REVISÃO HISTÓRICA 
Partido de criteriosa análise documental o autor dividiu a obra em duas partes num apreciável sentido integrativo. Na primeira parte estuda os primórdios do povoamento a partir do início do século 16 e traça uma grande linha do tempo enumerando sesmarias e aldeamentos, ramos familiares e povoações que foram se instalando ao longo da subida da Serra do Mar, às bordas dos campos de Santo André e regiões adjacentes.

Obra de excepcional importância para a historiografia regional, ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ABC PAULISTA: 1550-1892 foi publicado pela Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo, em 1992 e veio consolidar o nome de Wanderley dos Santos como um dos mais importantes historiadores do Estado de São Paulo. 

Como bem acentuou o historiador e jornalista Ademir Médice, “ a obra revela e esclarece algumas distorções impostas pela história oficial, com informações coletadas através de pesquisas em fontes primárias e relatos orais, além das notas acrescentadas em cada capítulo, que fornecem ao leitor um complemento de fontes e informações bibliográficas”.

Trata-se de uma obra que “mostra caminhos e aponta fontes” sempre em busca de soluções firmadas em pesquisa documental que muitas das vezes difere do conformismo da historiografia oficial. Munido de largo senso de observação aliado ao seu profundo conhecimento que adquiriu nos anos que esteve na direção do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo produziu uma obra que “retrata com veracidade documental os grupos étnicos, a formação e a transformação sociocultural da região e mostra os caminhos percorridos pelos desbravadores e colonizadores” que passaram e deixaram suas marcas naquela região. 

Muito há que se falar ainda a respeito da obra do grande historiador que foi Wanderley dos Santos. Tive a oportunidade de conhecê-lo quando ainda estava à frente do Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de São Paulo, funcionando na Avenida Nazaré, no bairro do Ipiranga. Posteriormente, numa rápida passagem que fiz até Franca, SP, pude mais uma e derradeira vez cumprimentá-lo enquanto instalava o arquivo histórico daquela cidade o qual esteve sob sua direção até a sua prematura morte. 

Seus arquivos hoje integrando o Banco de Dados do “Diário do Grande ABC”, o principal jornal daquela região, é um grande manancial histórico e inesgotável fonte de informações para conhecer a história real daquele trecho da Região Metropolitana. 

Obra essencial e basilar, ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ABC PAULISTA é fruto de aproximadamente 20 anos de pesquisas nos tantos possíveis arquivos públicos e privados a que o autor teve acesso. Uma obra que não apenas consegue elucidar aspectos obscuros e desconhecidos relativos à histórica do grande ABC paulista como, também, rendeu frutos para novos trabalhos investigativos em prol da memória histórica e social daquela região. 

Além da obra que acima tecemos breves e despretensiosos comentários, Wanderley dos Santos é autor dos seguintes trabalhos:

Lapa - livro que compõe a série: História dos Bairros de São Paulo, volume 18. Divisão de Arquivo Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1980.

História do Município de Ribeirão Pires. Trabalho mimeografado, PMRP (1974) e editado em livro pela edUFABC em 2017;

Mauá Ano Vinte. Imprensa Metodista (1975); 

História do Município de Rio Grande da Serra – trabalho datilografado (s/d); 

História do Município de Diadema, publicado postumamente (2000). 

Também realizou, entre outros, os seguintes trabalhos: elaboração da história dos bairros do Tatuapé e Vila Carrão, em São Paulo e história dos municípios de Franca, Peruíbe, Rifaina e Tapiratiba.Escreveu, ainda, textos de palestras e artigos divulgados em circunstâncias diversas.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ABC PAULISTA: 1550-1892 é um livro que deve ser lido com interesse, não mero com admiração.Um livro com tais qualidades bem merece ser celebrado.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

AVIAÇÃO EM TAUBATÉ

 NINJA: Biblioteca NINJA
 
Resenha 
Um livro que conta a história da aviação em Taubaté (SP) 
Por Arnaldo Chieus *
 
“A aviação em Taubaté e os 25 anos do Aeroclube Regional” foi editado em 2018. Com a publicação deste livro seus autores, Cesar Rodrigues e Carlos Caetano Florentino, prestam à memória da aviação em Taubaté o inestimável trabalho de reunir a síntese do processo histórico da aviação, desde o primeiro pouso de Anésia Pinheiro Machado, até a importância da Aviação do Exército.
 
 Pode-se afirmar que a aviação em Taubaté teve início em 1922, na primeira aterrissagem de uma aeronave em campo improvisado nas margens da ferrovia. O pouso realizado por Anésia Pinheiro Machado, então com 18 anos, pilotando o avião Caudron G-3, de fabricação francesa, batizado de Bandeirante, com motor 120 HP, foi parte da travessia aérea entre S. Paulo e Rio de Janeiro por ocasião das comemorações do centenário da independência do Brasil. O reide foi iniciado no dia 5 de setembro, com aterragens em Taubaté, Guaratinguetá, Cruzeiro, Pinheiral (RJ) e, por fim, no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, em 8 de setembro de 1922. Importante ser lembrado que a essa mesma época outro reide havia partido de Santiago (Chile), patrocinado pela Aviação do Exército chileno também em direção ao Rio de Janeiro, sob o comando do capitão Diego Aracena. Este reide não logrou êxito até o final uma vez que a aeronave chilena fez um pouso forçado na praia do Itaguá, em Ubatuba, impossibilitando o percurso. O reide chileno está descrito no livro "A Jornada Aérea: dos Andes ao Atlântico", de Cesar Rodrigues. 
 
A revolução paulista e as operações aéreas
 
Palco de operações aéreas durante a Revolução Constitucionalista de 1932, Taubaté apoiou as (operações aéreas) manobras das aeronaves paulistas ante as tropas federais. E com a construção de um campo de aviação grande número de aeronaves passou a circular no espaço aéreo da região do Vale do Paraíba com pousos em Taubaté, Pindamonhangaba, Cruzeiro e Lorena. 
Com o fim da revolução constitucionalista, a cultura aeronáutica já estava enraizada no cerne do povo taubateano e esse espírito levou à criação do seu primeiro aeroclube. E todo esse entusiasmo contou com o apoio da elite industrial da cidade. Octavio Guizard, da Cia. Taubaté Industrial CTI, destinou terras de sua propriedade para a construção e instalação de uma pista de pouso onde atualmente se localiza o bairro Parque Aeroporto. Com o passar dos anos o aerodesporto de Taubaté foi referência regional e contou em seu plantel com grandes e renomados instrutores.
 
Um pouso em Tremembé - A Fazenda Maristela 
 
Com a expansão industrial de Taubaté a pista de pouso foi desativada para dar lugar a um segmento na fábrica da Ford e de um novo bairro em Taubaté, o Parque Aeroporto em alusão ao antigo campo de pouso cedido pela família Guizard. 
A partir de então as operações do Aeroclube passaram a ser realizadas no campo da centenária Fazenda Maristela, erguida pelo barão de Lessa no século XIX para o cultivo do café e depois rebatizada pelos monges trapistas franceses da Ordem de Maristela. Localizada no vizinho município de Tremembé, a fazenda dispunha de um aeródromo e serviu ao Aeroclube nos últimos 15 anos de sua existência, formando e brevetando novos aviadores, tendo vários se tornado pilotos comerciais. 
O aeródromo da Fazenda Maristela, após a desativação do antigo aeroclube, serviu para pousos ocasionais e, posteriormente, abrigou oficinas para a manutenção de aeronaves ultraleves. 
 
As pioneiras da aviação em Taubaté
 
Resgatando os 25 anos do Aeroclube Regional de Taubaté o livro faz o registro de duas aviadoras que se destacaram e com seus exemplos incentivaram a prática da aviação civil nos meados das décadas dos anos 1930 e 1940: Joanna Martins Castilho e Elisa Braga, ambas treinadas pelo instrutor Astério Braga. 
 

Joanna Martins Castilho, natural de S. Paulo, nasceu em 1924 e foi apoiada pelos pais para realizar seu sonho de se tornar piloto de aviação. Sua família foi morar em Taubaté e aos 13 anos começou a frequentar aulas no Aeroclube de Taubaté demonstrando grande vocação para aprender manobras aéreas. Joanna, a Joaninha, como ficou conhecida, realizou seu primeiro voo solo com 14 anos e, aos 15 anos ganhou o primeiro campeonato de acrobacia aérea em 26 de outubro de 1940. Seus feitos como aviadora acrobata foram registrados pela imprensa da época e seu nome ganhou dimensão nacional. Joanna Martins Castilho voou desde 1938 até casar-se, em 1943, com Almerindo D'Alessandro, piloto brevetado também pelo Aeroclube de Taubaté, onde ambos também fizeram aulas de paraquedismo. Faleceu no dia 14 de junho de 1991 aos 67 anos de idade.
 

Maria Elisa Braga, também elevada à categoria de pioneira da aviação, foi brevetada em 1941 e nesse mesmo ano obteve a licença de piloto-aviador Internacional, em 8 de junho de 1941, pela Federação Aeronáutica Internacional. Além de pilotar aeronaves, Elisa Braga também saltava de paraquedas. Em 1941, durante as comemorações da Semana da Asa no aeródromo de Manguinhos, no Rio de Janeiro, após ter feito voos acrobáticos, realizou um salto de paraquedas, saindo de um avião da FAB a 500 metros de altura. Maria Elisa Braga, piloto e paraquedista, nasceu em Taubaté em 17 de novembro de 1903. Foi casada com o aviador e instrutor de voo Astério Braga.
 
Um taubateano nos céus da Itália
 
 
Nascido em Taubaté em 07 de outubro de 1922, Fernando de Barros Morgado ao atingir a maioridade ingressou no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) e, ao tornar-se a aspirante, candidatou- se para estar entre os oficiais e praças que compunham o núcleo do 1° GAvCA (Grupo de Aviação de Caça).
 
Após treinamento no Brasil, foi enviado aos Estados Unidos para o curso de pilotagem face à eclosão da Guerra. Concluída sua formação retornou ao Brasil onde recebeu o Gládio Alado, símbolo da Força Aérea Brasileira, na cor branca, que simbolizava a diferença (entre) com os oficiais da ativa, os quais usavam a insígnia na cor preta. 
 
E assim, como integrante desse grupamento, foi enviado para a Itália para voar o P-47 Thunderbolt, do "Senta a Pua". Nos campos da Itália executou inúmeras missões de combate e com o fim do conflito (vou e com o fim do conflito) voltou ao Brasil e passou a desempenhar funções de instrutor na Base Aérea de Santa Cruz. 
 
Ao dar baixa na Força Aérea, como segundo tenente, seguiu carreira na aviação civil, como comandante na Panair do Brasil. Fernando de Barros Morgado morreu em decorrência de desastre aéreo no dia 16 de junho de 1955 nas proximidades de Assunção, no Paraguai, a bordo de Constallation 263, num voo Londres-Buenos Aires, com escalas no Rio de Janeiro e S.Paulo. 
 
O capítulo final é dedicado ao Cavex - Comando de Aviação do Exército, a principal base aérea do Exército Brasileiro e sua importância estratégica por estar localizada em Taubaté, próximo da indústria aeronáutica e dos importantes centros de pesquisa e infraestrutura aeronáutica do Brasil. Desde 1993 a Base Aérea foi utilizada pelo Aeroclube Regional de Taubaté, que fazia uso de dois hangares civis, abrigando uma escola de pilotos e comissários de bordo.
 
* Arnaldo Chieus é professor, advogado, entusiasta da aviação e membro do Conselho Gestor do Instituto Salerno-Chieus